domingo, 19 de agosto de 2012

DEVEMOS ABOLIR A ESTÉTICA?* (BERTHOLD BRECHT)

Caro senhor X,

Quando o convidei para encarar o teatro de um ponto de vista sociológico, eu o fiz na esperança de que a sociologia fôsse a morte de nosso atual teatro. Como o senhor percebeu, a sociologia tinha uma tarefa simples e radical: provar que não havia motivos para esse teatro continuar existindo nem perspectiva alguma para nada fundamentado (agora ou no futuro) nos supostos que, outrora, fizeram o teatro possível. Para citar um sociólogo, cujo vocabulário espero que ambos aceitemos, não há mais espaço sociológico para esse teatro. Seu ramo de pensamento é o único que desfruta de suficiente liberdade; todos os outros estão estreitamente comprometidos em perpetuar o nível geral de civilização de nossa época.
O senhor está imune à superstição habitual de que uma peça tem missão de satisfazer necessidades humanas eternas, quando a única necessidade que ela sempre se propõe a satisfazer é a de ver um espetáculo. Sabe que as necessidades mudam e sabe por quê. Como não vê por que o desaparecimento de uma necessidade poderia significar o colapso da humanidade, o senhor, o sociólogo, está preparado para admitir que as grandes peças de Shakespeare, a base de nosso teatro, não são muito eficazes. Essas obras foram seguidas por três séculos, durante os quais o indivíduo transformou-se num capitalista, e o que as matou não foram as conseqüências do capitalismo mas o próprio capitalismo. Não há motivos para mencionar o teatro pós-Shaskespeare, que é inevitavelmente muito mais fraco, e que na Alemanha foi ainda corrompido por influências latinas. Ele continua a se sustentado apenas pelo patriotismo local.
Desde que adotamos o ponto de vista sociológico, percebemos que, no que diz respeito à literatura, estamos num pântano. Talvez sejamos capazes de levar o esteta a admitir o que os sociólogos sabem – isto é, que o teatro de hoje não presta – mas não podemos nunca roubar-lhe a convicção de que pode melhorar. (O esteta não hesitará em admitir que ele só pode conceber essa “melhora” do teatro usando os velhos truques do negócio: “melhor” construção no sentido antigo, “melhores” motivações para os espectadores acostumados com com as motivações dos bons tempos, etc) O sociólogo porém concordará conosco se dissermos que essa espécie de teatro não tem mais conserto e o melhor será nos livrarmos dela. Sabe quer há circunstâncias em que os aperfeiçoamentos não adiantam nada. Sua escala de valor não vai do “bom” ao “ruim” mas do “correto” ao “falso”. Se uma peça é falsa, ele não irá elogiá-la sob pretexto de que é “boa” (ou “bela”) ; e permanecerá surdo ao apelo estético de um espetáculos falso. Ele sabe o que é falso ; e não está especulando como o que é relativo. Baseia-se em interesses vitais. Não se diverte por ser capaz de provar tudo, mas quer descobrir aquela coisa que vale a pena provar. Não toma a responsabilidade de tudo, mas de apenas uma coisa. O sociólogo é o homem que nos serve.
O ponto de vista estético não é adequado para as peças que estão sendo escritas hoje, mesmo se conduz a julgamentos favoráveis. Pode-se verificar isso em qualquer movimento em favor dos novos dramaturgos. Mesmo quando o instinto dos críticos os orientou corretamente, seu vocabulário estético deu-lhes muitos pouco argumentos para a sua atitude favorável e nenhum meio adequado de informar o público. Além disso, o teatro, enquanto encorajava a produção de novas peças, não forneceu nenhum guia prático. Assim, no fim de contas, as novas peças apenas serviram ao velho teatro e ajudaram a adiar o colapso do qual depende o seu próprio futuro. É impossível entender o que está sendo escrito hoje, ignorando-se a ativa hostilidade da geração presente a tudo que a precedeu, e participando-se da crença generalizada de que essa hostilidade é um clamor sem importância que deve ser desprezado. Esta geração não quer simplesmente capturar o teatro, com sua plateia e o resto, para apresentar boas peças contemporâneas na mesma sala de espetáculo e para o mesmo público; nem tem ela nenhuma possibilidade disso. Mas tem a possibilidade e o dever de capturar o teatro para um público diferente. As obras que estão sendo agora escritas estão, cada vez mais, conduzindo ao grande teatro épico que corresponde à situação sociológica: nem o seu conteúdo nem a sua forma podem ser entendidos senão pela minoria que compreendeu isso. Não vão satisfazer a velha estética: vão destruí-la.

Com o senhor nesta esperança.

BRECHT
*SOLLTEN WIR NICHT DIE AESTHETIK LIQUIDIEREN? 1927. Tradução de Luiz Carlos Maciel. O Senhor X, o sociólogo a que se refere Brecht, era o Professor Fritz Sternberg. Publicado no jornal Berliner Börsen-Courier. Na época, Brecht interessava-se pelas produções de Erwin Piscator, espetáculos documentários e políticos também chamados por seu criador de “teatro épico.

PRIMEIRAS PINCELADAS

Então, na verdade eu já tenho um blog, que é o #PAPUTIÁ, mas eu senti a necessidade de criar um outro blog para dividir experiências teóricas ou práticas dos estudos teatrais. Claro, que é algo apaixonante escrever aquilo que eu mais curto, mas é difícil! Eu sempre digo que escrever é um parto. E nesse nascimento, às duras penas, vai norteando o meu estudo, a minha vontade de expressar o meu combate, que é a luta pelo conhecimento pleno e transformador e não pelo conhecimento, adorno de prateleira de biblioteca. Eu gostaria que os textos aqui escritos fossem amplamente criticados, debatidos e, portanto, lido. 

Bom, pra começar essa odisseia, eu gostaria de delimitar o meu percurso teórico neste primeiro momento de tímidas pinceladas. Através de experiências mais apuradas e vividas cotidianamente pela prática dos exercícios e dos jogos, considero-me “Boaliano”, ou seja, estudo com frequência o método criado por Augusto Boal, que eu considero como genuinamente nosso, brasileiro. Para entender Boal, é preciso caminhar pela estrada traçada por Brecht e Stanislavski, que são teóricos balizadores do método boaliano. Nesta trilha teórica-teatral, é preciso conhecer e entender os princípios básicos que constroem toda essa poética boaliana, baseada na perspectiva do oprimido. Paulo Freire, como um exemplo maior e mais toante, apresenta-se como um importante contribuinte para essa teoria; e os estudos mais tardios irão se debruçar na pedagogia do oprimido como possibilidade de aprendizagem, numa realidade escolar que, tradicionalmente, se vê no fatiamento e concentração de disciplinas. 

Minha pesquisa se divide em duas partes elementares: a primeira fase, que é a de iniciação, consiste na realização de um traçado histórico do papel do personagem épico no Teatro de Arena, valendo-se da análise apurada de sua importância metafórica e seu papel representativo de simbolizar notas de uma determinada época, tanto no que tange a sua conformação estética como na criação, percepção e produção cênica. O primeiro passo é debruçar-se na linha do Sistema Coringa como contraposição de estrutura tradicional protagônica, que finca uma nova bandeira no Teatro Brasileiro, que é a discussão da propriedade sob o personagem. 

Na segunda etapa, teremos o estudo mais profundo sobre o teatro do oprimido e sua importância na valorização de novas perspectivas de reivindicação e na proposta de uma nova metodologia atrelada ao ensino. Será o meu objetivo estudar sobre teatro do oprimido no viés pedagógico, tanto como experiência didática como possibilidade teórica de ensino. 

Os primeiros artigos deste blog serão fichamentos realizados para fins de pesquisa, que foram importantes para esmiuçar o trabalho de maturação e de percepção laboratorial do Teatro de Arena. Junto, teremos uma tentativa de análise crítica das obras de Augusto Boal nos momentos experienciais do Arena, começando pela Revolução da América do Sul, passando pela seção do “Arena conta” , enfatizando o comportamento do personagem em diversas disposições teatrais 

Levando isso em conta, para abrir o caminho de outros posts, começarei pela digitalização de um texto teórico de Brecht, que norteia o princípio do estudo do Teatro Político: “Devemos abolir a estética?” Consiste em uma carta que relata as posições do teatro em detrimento do registro social. É a espinha dorsal (ao meu ver) da concepção traçada por Antonio Cândido em “Crítica e Sociologia” artigo esse que é um pontapé inicial para entender as principais nuances e contornos sobre a obra e sociedade. E por fim, por que Coringar? É um verbo trazido pela própria Cecilia Boal, num momento em que ela coloca as atitudes essenciais de curinga: o curinga deve estar pronto, deve se preparar para “coringar”! Portanto, considero um preparo, uma meia, uma meia cortina que entrelaçará a nossa práxis com o nossas buscas pelos caminhos teóricos.
"Arena conta Tiradentes" (1967-1968): o cume da utilização do Sistema Coringa